A LEGIÃO URBANA CANTANDO O BRASIL


Dado Villa-Lobos, Renato Russo e Marcelo Bonfá
       Num ato de pura nostalgia decidi escrever sobre uma das bandas onde, há tempos remotos, considerava a mais perfeita de todas.
     A Legião Urbana fez parte de momentos significativos da minha adolescência. Costumava dizer que, Renato Russo conseguia captar todos os sentimentos e situações, através de suas letras, além de carregar uma levada punk rock que empolgava. 
          Longe de ser apenas uma banda que cantava sobre amores e desilusões adolescentes, a Legião Urbana sabia canalizar o sentimento de revolta frente à realidade política do país. Por isso, nesse post, selecionei uma música de cada álbum de estúdio da banda que, na minha opinião, possuem em suas letras, reflexões ainda atuais de um Brasil que insiste em não mudar. 

Disco: Legião Urbana (1985)
Música: Geração Coca-Cola


      O primeiro disco da banda colecionou hits, entre eles: Será; Ainda é cedo; Por enquanto; Soldados; Teorema; e, Geração Coca-Cola. Considerado um trabalho importante dentro do cenário musical brasileiro, especificamente para o chamado Rock Brasil, o primeiro disco da banda tem uma levada de pós-punk, com influências de The Smiths, Joy Division, The Cure e The Clash.
        Geração Coca-Cola tem uma letra marcante, principalmente se pensarmos o contexto político do país, da  abertura democrática; das eleições indiretas para presidente; as primeiras experiências de viver num  país sem censura; e, com isso, a liberdade artística, possibilitando o surgimento de novos movimentos e sons.
      Como em várias letras sociais da Legião Urbana, a crítica à mídia sinalizava uma forma de tentar alertar ao jovens que, num país democrático as responsabilidades aumentam. Além disso, o antagonismos ideológico, que ainda separava o mundo, entre capitalistas e comunistas, se fazia presente nas discussões acerca do cenário geopolítico. O Brasil, ainda país de 3º Mundo (expressão que não se utiliza mais), carecia ainda de uma personalidade própria. Diante disso, Renato canta:



QUANDO NASCEMOS FOMOS PROGRAMADOS 
A RECEBER O QUE VOCÊS
NOS EMPURRARAM COM OS ENLATADOS 
DOS E.U.A., DE 9 ÀS 6

O consumismo do american way  of life não satisfazia a esses jovens, de classe média alta de Brasília e que tinha na ideologia punk e nos escritores da geração beat todo a critica à sociedade de consumo.


DESDE PEQUENO NÓS COMEMOS LIXO
COMERCIAL, INDUSTRIAL...

Mesmo com o cenário de abertura democrática, há muita audácia nas letras ao apresentar uma contraposição aos sistemas vigentes, criticando as leis instituídas.


VAMOS FAZER NOSSO DEVER DE CASA
E AÍ ENTÃO, VOCÊS VÃO VER
SUAS CRIANÇAS DERRUBANDO LEIS.... 

Por fim, a convocação a uma revolução (por que não dizer burguesa), de uma juventude niilista e herdeira desses elementos da sociedade de consumo, influenciada pelo um desejo de mudança.


SOMOS OS FILHOS DA REVOLUÇÃO
SOMOS BURGUESES SEM RELIGIÃO
SOMOS O FUTURO DA NAÇÃO
GERAÇÃO COCA-COLA


Disco: Dois (1986)
Música: Metrópole



Com sucesso consolidado, a banda experimenta outras sonoridades, com letras mais suaves e poéticas, porém, Metrópole impressiona pela agressividade irônica e, novamente, a crítica à sociedade midiática que torna em espetáculo a realidade. No início da música, a provocação:


É SANGUE MESMO, NÃO É MERTIOLATE
E TODOS QUEREM VER
E COMENTAR A NOVIDADE

Tal como nos dias de hoje, o noticiário assume um papel de entretenimento da realidade, onde,  de forma alienada os sujeitos não conseguem enxergar a dimensão dos problemas sem relacionar à ficção barata.

Como num conto kafkiano, a burocracia surge para ordenar o caos instalado, uma vez que depois de passar por atendimento, triagens e entregar toda a documentação, descobre-se que não há médicos ou possibilidades de ter o problema resolvido.


POR GENTILEZA, AGUARDE UM MOMENTO
SEM CARTEIRINHA NÃO TEM ATENDIMENTO

Finalizando, a atendente do hospital revela que o paciente não terá seu problema resolvido, é preciso paciência. E, para disfarçar o descaso público, limpa-se a sujeira aparente. A menção à novela, reafirma o desconforto com a mídia brasileira, sobretudo ao canal que controla o gosto do público brasileiro.

PRA LIMPAR TODO ESSE SANGUE CHAMEI A FAXINEIRA
E AGORA EU VOU INDO SENÃO PERCO A NOVELA

Disco: Que país é este? (1987)
Música: Que país é este?

O curioso dessa música é que a pergunta "Que país é este?" foi feita pelo presidente do partido Arena, Francelino Pereira, na década de 70. Virou slogan da campanha contra a ditadura e, mais, tarde, título do terceiro álbum da banda.

Talvez, a música mais emblemática, sendo regravada por centenas de bandas, além, de ser a música preferida das bandinhas que surgem todos os dias entre os jovens do país (talvez, pela facilidade de tocar os seus três acordes).


O certo é que dispensa comentários e, do início ao fim, a música permanece atual, afinal, trechos como:


NINGUÉM RESPEITA A CONSTITUIÇÃO
MAS TODOS ACREDITAM NO FUTURO DA NAÇÃO

Poderia muito bem entoar uma crítica ao Movimento Brasil Livre (MBL) e todo o esquema de orquestramento do impeachment da atual presidente.

E o questionamento é sem dúvida algo de difícil resposta, afinal:


QUE PAÍS É ESTE?

Selecionei uma gravação que acho curiosa. É um registro ao vivo, onde Renato Russo trás, na introdução da música, referências de Caetano Veloso (Cajuína) e Gilberto Gil (Aquele abraço), além de no final, disparar sua crítica aos programas dominicais e encerrar com uma proposta que causa silêncio na  platéia. É preciso escutar para sentir.


Disco: As quatro estações (1989)
Música: 1965 (Duas tribos)

Nessa música o tema é a Ditadura Militar, sobretudo tudo a condição dos sujeitos nesse período complicado, o cerceamento às liberdades, a violência do regime. Não por acaso, o ano do Ato Institucional Nº 5 (AI-5), figura como título da música.


VOU PASSAR
QUERO VER
VOLTA AQUI
VEM VOCÊ
COMO FOI
NEM SENTIU
SE ERA FALSO
OU FEVEREIRO
Os questionamentos que eram impostos, a falta de liberdade, com prisões arbitrárias nos departamentos do DOPS, assim como o interrogatórios aparecem no  trecho acima.

No momento em que torturadores são exaltados, a música fala da amputação, não apenas psicológica, mas física e, alerta, podia ser qualquer um, pois o regime não fazia distinção de vítimas.


CORTARAM MEUS BRAÇOS
CORTARAM MINHAS MÃOS
CORTARAM MINHAS PERNAS
NUM DIA DE VERÃO
NUM DIA DE VERÃO
NUM DIA DE VERÃO
PODIA SER MEU PAI, PODIA SER MEU IRMÃO
A censura agia contra os que pensavam diferente e além do governo. A manipulação da informação servia era a forma que o militares usavam para legitimar a violência, transformando em bandidos aqueles que lutavam contra da ditadura militar.


QUANDO QUEREM TRANSFORMAR 
INTELIGÊNCIA EM TRAIÇÃO
QUANDO QUEREM TRANSFORMAR
ESTUPIDEZ EM RECOMPENSA
QUANDO QUEREM TRANSFORMAR
ESPERANÇA ME MALDIÇÃO

São nesses momentos, onde as possibilidades de uma passado de violência institucional ressurgem, vale o questionamento:


E VOCÊ DE QUE LADO ESTÁ?

Para finalizar, nesse trecho ao vivo, de 1990, Renato desfere toda sua crítica à situação do país. Demonstrando revolta e transformando o momento em puro lirismo crítico, finaliza a música com a ironia habitual.


Disco: V (1991)
Música: O teatro dos vampiros


O momento era delicado para Renato Russo, inicia-se o tratamento contra o vício das drogas, tanto é que a música "A montanha mágica" deixa explícito. Outro fato curioso desse disco é o flerte com a música progressiva, com músicas extensas, inviáveis comercialmente, mas, como se tratava de Legião Urbana, o disco foi um sucesso.

Uma música muito tocada foi "Teatro dos vampiros", onde a crítica parece recair sobre questões econômicas e sociais como: o desemprego, a violência, a falta de dinheiro e a desesperança de viver em um país em caos econômico.



VAMOS SAIR
MAS NÃO TEMOS MAIS DINHEIRO
OS MEUS AMIGOS TODOS ESTÃO
PROCURANDO EMPREGO

Disco: Descobrimento do Brasil (1993)
Música: Perfeição





Ainda década de 90, a banda aparece com um disco de produção impecável e, posso dizer, meu favorito por uma série de questões.

Perfeição
, a música que cabe em qualquer momento é um relato sociológico do pouco do que o Brasil é o brasileiro. De uma ironia extrema convoca todos para celebrar o que temos de melhor (pior).



MEU PAIS E SUA CORJA
DE ASSASSINOS COVARDES
ESTUPRADORES E LADRÕES
Em um país que formou um Estado, sem a participação do povo, as instituições estão alheias aos desejos e necessidades verdadeiras. Os aparatos de controle formam o cidadão e o controla.


VAMOS CELEBRAR 
A ESTUPIDEZ DO POVO
NOSSA POLÍCIA E TELEVISÃO
VAMOS CELEBRAR NOSSO GOVERNO
E NOSSO ESTADO QUE NÃO É NAÇÃO

E, sem dúvida, num país onde a nação não se formou completamento, os elementos de unidade são fluídos e instáveis. Não conseguimos dar conta dos problemas, o cada um por si dá o tom.


CELEBRAR A JUVENTUDE SEM ESCOLAS
AS CRIANÇAS MORTAS
NOSSA DESUNIÃO
Mas, tudo termina em carnaval, de época ou fora dela, não importa qual o resultado, o brasileiro consegui brincar com a própria tragédia que é o Brasil.

VAMOS COMEMORAR COMO IDIOTAS

A CADA FEVEREIRO  FERIADO


Numa das letras mais bonitas da banda e mais provocantes, Renato invoca, alerta:

VAMOS CELEBRAR A ABERRAÇÃO

DE TODA A NOSSA FALTA DE BOM SENSO
NOSSO DESCASO COM EDUCAÇÃO


Talvez, a substituição ao Hino Nacional deveria ser repensada, pois, Perfeição seria o substituto ideal.

Disco: A tempestade ou o Livro dos Dias (1996)
Música: Música de trabalho

E, para finalizar, o disco mais marcante e difícil na minha opinião. Marcante, pois revelaria, Renato Russo não teria mais muito tempo, o seu fim estava próximo. Todas as músicas são de melodias difíceis e, sinceramente, algumas até abaixo do que representara a banda Legião Urbana.

Mas, todo ele soa com um despedida. A começar pela citação de Oswald de Andrade: "O Brasil é uma República Federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus".

Por que Renato Russo e sua Legião Urbana foram tão importantes?

Porque eram os porta vozes de uma geração de jovens brasileiros, com as mesmas dúvidas, os mesmo desejos, os mesmos amores de tantos outros jovens, porém, brasileiros. E esses problemas apresentados acima, eram sobretudo os problemas de um país marcado pela violência, pela resseção econômica, pelo descaso das autoridades e pela instabilidade. Isso implicava em todo o resto.

E como todo brasileiro, só pensamos muitas vezes, ao chegar em casa, esquecer de tudo:

DO POUCO QUE NÃO TEMOS
QUEM SABE ESQUECER UM POUCO
DE TUDO QUE NÃO SABEMOS
post incompleto....

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