O NARCISISMO DAS PEQUENAS DIFERENÇAS

Imagem do filme A vila, de M. Night Shyamalan

Evito falar de religião, sobretudo nas minhas aulas. Antes, me arriscava a explicar a ideia central da Ética protestante e o espírito do capitalismo (Max Weber), para alunos do curso supletivo, mas quase sempre resultava em mal entendido.

Porém, lembro-me de ter lido certa vez um último artigo do Profº Antônio Flávio Pierucci, onde ele destacava a urgência de se compreender e denunciar a forma abusiva de alguns grupos ditos religiosos e seus discursos de prosperidade, que aproximavam as religiões neopentecostais em balcão de negócios da fé.

Costumo dizer que o que me levou à sociologia foi a religião, uma vez que frequentando o grupo de jovens da igreja católica, participando das suas atividades, na esperança de entender a realidade social, percebi o quanto esses grupos religiosos se afastam desta dita realidade social. A partir disso desisti de ter uma religião ou buscar um fé religiosa.

Percebo que muitas pessoas sentem uma necessidade, quase obsessiva de se encontrar uma religião, até aí, tudo bem. Mas, o que vejo é que a uma desinstitucionalização da vida, como destaca Guita Grin Debert.

Em linhas gerais, as instituições criadas na modernidade perdem a capacidade de controle do sujeito no curso da sua vida. Assim é com a escola, o trabalho, a família e a religião. Como numa espécie de ordem invertida, os sujeitos passam a definir os rumos das instituições a partir de suas necessidades individuais, desta vez, este se vê como sujeito autônomo. Começam a surgir descompassos entre sujeito e instituições.

Exemplo disso é a quantidade enorme de igrejas que encontro no bairro onde moro, na periferia da cidade de São Paulo. Concorrendo com os bares e salões de cabeleireiros, uma quantidade absurda de igrejas de todos os tamanhos, atendendo a todos os públicos. Desde os salões enormes que comportam centenas de fiéis à pequenas garagens que não cabem sequer meia dúzia.

E sempre vem a dúvida, qual a diferença entre as igrejas? Quem decidi abrir e sobre o comando de quem fica essas igrejas? Qual o discurso é pregado em cada uma delas?

Certo é que muitas vezes, nem sempre que as frequenta consegue me dar essas respostas, a não ser exemplificar que a igreja é legal, o pessoal é muito legal, as pessoas são diferentes ou que lá é diferente das outras igrejas. Fora isso, sem muitas informações.

Outro ponto interessante é a possibilidade de mobilidade que os sujeitos encontram de ir de uma igreja a outra, buscando atender a seu perfil individual ou até mesmo do grupo, uma vez que o sujeito normalmente vai acompanhando de parentes ou colegas próximos.

O NARCISISMO DA PEQUENAS DIFERENÇAS

Observo que há uma busca narcisística na fé, que torna os sujeitos egoístas, mesmo quando atribuem suas ações para o outro. Exemplo disso é a proliferação de grupos que se criam para ajudar, de forma isolada, os "necessitados", criando em torno de si toda uma identidade de valorização muito mais do próprio grupo e da ação, do que na causa a ser defendida. Assim, o anjos da noite, o heróis, o filhos e toda a sorte de auto denominação surge como forma de chamar atenção para si.

Narciso e Eco por Nicolas Poussin

Mas, a faceta interessante desse processo encontra-se em sociedade complexas, onde as massas formam um todo que não é homogêneo, acarretando assim, uma massa de seres de diferenças, pluralidades culturais que não conseguem viver de forma pacífica e harmoniosa, dada a quantidade da demanda dos sujeitos.

A saída é o agrupamento em pequenos grupos, unidos por afinidades, interesses, propostas e ídolos diferentes. Com isso, surge a necessidade de uma sedimentação de espaços particulares, que possa abrigar esses grupos (no caso aqui as igrejas). Os grupos se fecham no seus rituais, nas suas regras e visões de mundo, execrando aqueles que agem de forma diferente (vale lembrar que nem sempre isso se dá de forma transparente). Temos assim, um comportamento egoísta do grupo.

É isso o que Freud denominará de narcisismo das pequenas diferenças, conceito encontrado no trabalho Análise do Eu e psicologia das massas, de 1921. Nesse trabalho, Freud alertará sobre os perigos do comportamento das massas e a formação de pequenos grupos, que irão rechaçar o desprezo pelas diferenças através da persuasão e da violência, na tentativa de salvar os incrédulos e despreparados.

A VILA DE SHYAMALAN

É sobre isso que retrata o filme de 2004, A vila, de M. Night Shyamalan. Nele, nove pessoas decidem se isolar do mundo externo, criando uma vila com regras e uma conduta própria, distante da sociedade. A base do controle, como sempre, está na medo que os denominados anciões criam nos habitantes da vila, para mantê-los sobre controle.

Ao longo do filme, os problemas que surgem no grupo, a partir do atentado a um rapaz, faz com que monstros sejam criados para distrair e manter a coerção no grupo, revelando assim a fragilidade ética desses grupos. 


Ao longo do filme é possível perceber uma necessidade de ir além dos muros da vila, algo que fica explicito a partir do incidente como jovem rapaz, que cria a dúvida de sair ou não para buscar ajuda. Esse socorro só é possível fora do grupo.

O suspense de Shyamalan revela pessoas que, a partir de seus medos, fobias, receios e repulsa do diferente, se isolam, em busca de uma salvação que eles afirmam ter em seu controle. Algo parecido com os diversos grupos de fé que surgem a todo momento, protegendo fiéis do mundo externo e criando assim o seu próprio mundo.

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