O GENE SOLITÁRIO

Existe um discurso imperativo sobre a questão da solidão, que aparece como algo que devemos nos acostumar, pois "faz parte" da vida. Esse discuso esconde alguns riscos e problemas ocultos num discurso de "liberdade individual".



A SOLIDÃO NECESSÁRIA

Arthur Schopenhauer, filósofo alemão do século XIX, dizia que "quem não ama a solidão, não ama a liberdade". A ideia é simples, quanto mais nos vemos em saídas fáceis, buscando amizades, festas e diversão, mais nos envolvemos em um manto de mentira e perdemos a capacidade de enfrentar a verdade da vida, que é a solidão. Outro ponto que o filósofo destaca é que, o encontro com o nosso EU depende da solidão. Apenas nela somos livres de fato das ilusões de uma vida "feliz".

Em certa medida, o discurso favorável a uma vida solitária se apoia nessa concepção e acredito que tem total fundamento. Pois, sem a solidão necessária, nos tornamos seres exageradamente dependentes, carentes a todo o momento, incapazes de enfrentar adversidades e obstáculos da vida. Ficamos sempre a mercê do outro e, quando não encontramos isso, fugimos da solidão buscando saídas fáceis e viciantes, na maioria das vezes ilusórias.

Basicamente as pessoas costumam dizer: acostume-se a fazer as coisas sozinho; ficar sozinho é bom; não precisa de ninguém para poder sair; eu gosto de fazer as coisas sozinho; tem que aprender a gostar de si mesmo; entre tantas outras coisas.

Tive muita dificuldade e tenho até hoje de entender isso, porém, tenho consciência da importância da solidão para as pessoas (inclusive, exercito-a e recomendo). O momento de encontro com o próprio eu, a capacidade de se convidar para sair e ir, sozinho, para os lugares é libertador e, diria, necessário.

Esse discurso da solidão vem ganhando adeptos, sobretudo entre os mais jovens, onde tornou-se um mantra quase incontestável. O que me fez me sentir culpado por um bom tempo, logo após meu divórcio, quando me vi sofrendo por estar só e não aceitar essa solidão. O que recebia como sugestão e orientação era um "acostume-se, viver sozinho é bom".


A ARMADILHA DO DISCURSO DA SOLIDÃO

Passei a criticar esse discurso e ver nele uma armadilha perigosa, afinal, se somos seres sociais, se toda a construção das sociedades se deram por meio de ações colaborativas, das relações e interações sociais, como podemos aceitar a solidão como máxima?

A primeira armadilha do discurso da solidão é retirar de nós a capacidade de perceber que SIM, precismos uns dos outros e esse contato é fundamental. O discurso solitário torna-se egoísta na medida em que vejo à minha disposição um mundo pronto para me servir, com pessoas que são meramente meios para que eu possa conseguir as coisas e que me sirvo delas até o momento em que preciso.

Esse comportamento egoísta nos leva não há uma busca da individualidade necessária, que devemos preservar e respeitar, mas de uma individualidade alienante, onde perco o contato com o outro e, pior, o coisifico

A coisificação do ser ou reificação, conceito que devemos a Karl Marx e que atualmente assume proporções maiores, nos coloca como coisas, destituídas de valores humanos básicos. Sendo assim, somos objetos de alguma forma de prazer do outro, mas nunca com um valor real e duradouro. A cada novidade, ou no surgimento de uma nova pessoa, perdemos nosso valor instantaneamente, a fila anda como costuma-se dizer. 

Não é preciso dizer que essa percepção de valor dada ao sujeito mo e livre-coincide com a lógica de mercado aplicado ao capital, onde o discurso central do consuma o máximo o mais rápido possível aplica-se às relações humanas.

Quanto mais propensos a nos desprender de objetos, lugares e pessoas, mais estaremos propensos a consumir o novo a cada momento. Então, nessa lógica, só tem valor quem pode acompanhar esse ritmo autodestrutivo. 



A CONEXÃO COM O MUNDO ATRAVÉS DO OUTRO

Não é surpresa que, pessoas que praticam o discurso do desapego podem apresentar problemas decorrentes com a própria solidão, entre eles a depressão, a ansiedade e a angústia.

Não obstante, percebo que o tiro sai pela culatra no momento em que, a fuga para caminho solitário nos joga a um estilo de vida de vícios e saídas efêmeras onde nunca nos realizamos de fato.

No excelente stand up da comediante australiana Hannah Gadsbintitulado Nanetteela fala sobre Van Gogh, nos alertando para a glamourização das doenças mentais e dos equívocos de quem pensa que tal artista era gênio porque era louco etc. Van Gogh sofria com seu problema decorrente do estado mental, por isso, sequer conseguia divulgar sua arte e vender seus quadros, a única pessoa que ele tinha era seu irmão Vincent que o conectava com o mundo. Sem seu irmão, sequer saberíamos da existência de Van Gogh.

As pessoas são, uma conexão real com o mundo. Na solidão completa perdemos essa conexão com o mundo e com a humanidade necessária.

Na análise de Zygmunt Bauman, numa modernidade líquida as relações não são mais duráveis, os vínculos afetivos se desfazem com a mesma rapidez. 

Exemplo disso está nas nossas relações online em aplicativos como WhatsApp, onde conversamos com o outro no momento em que este nos interessa, pois quando não, simplesmente o ignoramos sem perceber que do outro lado existe um ser humano. A relação com a interface do smartphone reduz nossa capacidade de percepção do outro. Da mesma forma que assistir uma tragédia pela TV nos coloca como meros expectadores de um filme de ação. Já não sofremos mais pelas tragédias, não nos sensibilizamos com o outro. As amizades e relações são momentâneas e fluídas, perdem a forma e importância.


Cena do filme Her


O QUE FAZER?

Devemos valorizar nossa solidão necessária para manutenção da individualidade, como forma de auto conhecimento e enfrentamento da vida. Porém, não podemos achar que a solidão constante é uma realidade aceitável.

O outro sempre será minha conexão com o mundo, com a vida e com a humanidade necessária. Não há felicidade plena quando não se pode compartilhar momentos e o compartilhar aqui não tem nada a ver com as redes virtuais. Compartilhar de fato, de corpo presente e com uma ligação afetiva duradoura.

Ao desvalorizar o outro e a constituição de uma afetividade, corremos o risco de sermos consumidos por uma vida sem histórias, sem um sentido de fato e relegada a uma ilusória felicidade solitária.


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