A MULTIPLLICIDADE DO EU NA CLÍNICA ANALÍTICA

Intersecções entre Filosofia e Psicanálise

O conhecimento de si é um tema que acompanha a história da filosofia, desde os pré-socráticos aos existencialistas, onde encontraremos algumas interrogações sobre o quê e quem somos. Dentro de um plano individual, quem nunca parou para fazer essa pergunta: Afinal, quem sou eu?

Encontraremos na Filosofia uma intersecção com o trabalho analítico, pois a busca do conhecimento de si aparece primeiro como um ponto dentro da Filosofia e, mais tarde, com a psicanálise, Freud irá inaugurar um campo novo de investigação sobre o sujeito e os elementos que o constitui.

A apropriação dessa temática é conferida de forma distorcida pelos aclamados influenciadores das redes sociais da internet, sobretudo no contexto pós-pandemia, diversos gurus, coachsinfluencers, terapeutas da alma abordam o conhecimento de si a partir de um receituário pronto e acabado. Onde o reside o perigo, pois numa busca fácil de explicações há a possibilidade de se afundar em respostas ilusórias, acobertando ainda mais a difícil trajetória que nos leva a um encontro com o eu.

A IDENTIDADE COMO UM ELEMENTO RELACIONAL

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Seguindo uma trilha antropológica, essa busca pelo conhecimento de si atravessa diversos caminhos, pois a nossa identidade está atrelada a um emaranhado de relações fundamentais para iniciarmos essa exploração. A constituição do eu passa pela trajetória do contexto histórico-social, que envolve um conjunto de tempo-espaço, decisivos para a formação de um grupo social, por conseguinte, de uma visão de mundo.

Cada sujeito passa a ver o mundo com os olhos da sociedade a qual pertence e, seguindo os passos do materialismo-histórico, a classe social de onde advém esse sujeito será decisiva para seu olhar para o mundo e para si.

Antes disso, o papel que os primeiros contatos com a família e todo o grupo inserido no processo de socialização primária, entregará a esse sujeito a herança cultural responsável por formar as primeiras (e decisivas) lembranças.

Somos seres sociais e, por isso, seres relacionais dentro de um conjunto mais amplo. Pensar a minha individualidade inclui pensar cada um desse elementos a fundo e de forma crítica. 

INTERSECÇÕES ENTRE A FILOSOFIA E A PSICANÁLISE

É nesse sentido que o conhecimento de si é um caminho complexo e tortuoso, pois a tentativa de suavizá-lo nos afastará cada vez mais desse processo.

Porém, como no setting analítico isso pode interferir na busca de um caminho para um entendimento de si mesmo. É possível que um doente possa curar a si mesmo? Que uma pessoa acometida pela depressão, inserida nesse quadro clínico possa buscar elementos que a retire desse estado? Ou que um neurótico, consiga compreender o seu sintoma inserido num contexto da neurose?

Para Sigmund Freud, a resposta é sim. E o caminho está na livre-associação, ou seja, possibilitar ao analisando falar o que vem à mente, regra técnica fundamental da psicanálise, que Freud percebe quando uma de suas pacientes lhe diz “deixe-me falar”.

É nesse processo que o analisando libera os conteúdos recalcados no inconsciente levando para o consciente, podendo assim ressignificar esses conteúdos recalcados.

A cura pela fala não se limita apenas em recordar fatos traumáticos, pois isso poderia levar a um agravamento de um quadro neurótico, levando o sujeito a outras psicopatologias.

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche nos lembrará que ao olharmos muito tempo para abismo, o abismo também olhará para dentro de nós. Assim, não basta a recordação de fatos traumáticas ou um simples buscar pelas totalidades ao qual somos formados e que nos concedeu traumas.

O importante, nesse sentido, é o que faremos com o que foi feito de nós dentro desse processo, como um outro filósofo, dessa vez o francês Jean-Paul Sartre nos colocará.

Dentro do trabalho analítico, ocorre o processo de transferência, fundamental para o processo de relação analista e analisando, é nesse processo que o analisando poderá recordar e, ao recordar, recuperar os conteúdos submersos no inconsciente. Nessa recuperação dentro da análise ele poderá elaborar esses acontecimentos, traumas e episódios que ficaram submersos, porém, latentes dentro da ação neurótica.

Por isso, o processo do conhecimento de si se distancia de uma fórmula pronta, acabada e fácil, vendida a varejo como uma solução que se enquadra dentro de uma lógica capitalista onde o individualismo é o ponto central dessa estrutura de organização social.

O conhecimento de si passa por questionamentos muito mais amplos e por isso mesmo difícil de ser realizado dentro da lógica apresentada acima. É no processo analítico com o auxílio da figura do psicanalista é que esse trabalho poderá ser feito, possibilitando a transferência, num processo de recordação, repetição e elaboração de fatos e eventos que porventura causaram traumas na infância e que na vida adulta irá se manifestar através dos processos neuróticos.

A psicanálise inaugurada por Freud tem como característica esse ponto de diálogo, buscando a intersecção com a cultura e a sociedade, levando o analisando a essa busca difícil, complicada e dolorosa a um conhecimento de si.

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