FLORDELIS É A REPRESENTAÇÃO DOS EVANGÉLICOS?

"De que adianta, meus irmãos, alguém dizer que tem fé, se não tem obras? Acaso a fé pode salvá-lo? Se um irmão ou irmã estiver necessitando de roupas e do alimento de cada dia e um de vocês lhe disser: "Vá em paz, aqueça-se e alimente-se até satisfazer-se", sem porém lhe dar nada, de que adianta isso? Assim também a fé, por si só, se não for acompanhada de obras, está morta."    Tiago 2:14-17

                                                                                             

Flordelis aparece usando jóia do marido morto, após ter dito que havia  desaparecido 

Quando esteve no Brasil, em  1832, o jovem naturalista Charles Darwin, que tinha apenas 22 anos, se espantou com o tratamento dados aos negros escravizados. Segundo Darwin: 

"estas ações foram feitas e remediadas por homens que professam amar o próximo como a sim mesmos, que crêem em Deus e rezam para que a Sua Vontade seja feita sobre a Terra!" (1)


Ele não entendia como uma sociedade tão religiosa seria capaz de tanto crueldade com outros seres humanos, inclusive, em cartas descreve alguns exemplos que teve a possibilidade de presenciar. 

Sim, estamos falando do século XIX, de um Brasil onde o catolicismo era dominante (a religião oficializada) e onde não se sonhava com um avanço dos evangélicos (sequer a existência de outras religiões que confrontassem o catolicismo).

O exemplo acima ilustra a ideia central desse texto, que religião e ética não caminham juntas e, mais, religião, política e economia sempre caminharam lado a lado, muitas vezes numa relação de mutualidade.

Com a permissão e participação da igreja a coroa portuguesa iniciou o processo de catequização dos índios, consequentemente, a dizimação de milhões de vidas indígenas, assim como toda sorte de violência promovida pela expedições bandeirantes.

A mesma igreja católica permitiu que os povos do continente africano fossem escravizados por não possuírem alma, segundo a autoridade dos padres, por isso não eram seres humanos. 

Com um salto no tempo, durante a ditadura militar, a ala conservadora da igreja católica assinou embaixo todas as atrocidades causada pelo regime militar. Com exceção da ala pertencente à teologia da libertação, que aproximava questões religiosas e políticas a partir de uma leitura do marxismo. 


A CULTURA VIOLENTA DO BRASILEIRO

Acontece que todo o campo de atuação religioso esconde algo que muito autores clássicos, como Sérgio Buarque de Hollanda, já apontavam: nossa cordialidade e bondade é apenas a capa que esconde um povo que mistura questões públicas e privadas, que pessoaliza e se apropria do espaço público como se lhe pertencesse.

Para o sociólogo espanhol Manuel Castells "a violência para nós, brasileiros, é um valor", presente nos campos simbólicos de atuação, em todos os espaços. A moral e a fé religiosa não ficam distantes disso, sempre presentes de forma violenta, como uma obrigação, impondo uma moral de uma fé única, perseguindo outras religiões (principalmente as de matrizes africana), impondo uma visão patriarcalista e consequentemente machista, onda a mulher teria o papel de submissão, aliando-se ao poder e aos poderosos para expandir seu controle sobre a sociedade brasileira. 

Sendo assim, as religiões dominantes são em si conservadoras, que adotam um discurso de medo, de vigilância constante, afinal, a única forma de manter um rebanho de ovelhas dóceis é conservando o discurso e as práticas.


O BRASIL DOS EVANGÉLICOS

A situação atual é outra, vivemos num país onde a hegemonia católica não faz parte do contexto social brasileiro. Desde o final dos anos 80, as religiões evangélicas vem roubando (sem trocadilhos) a cena, divididas em diversas denominações, hoje os evangélicos declarados correspondem a 31%, enquanto católicos correspondem a 50% da população (2).

Porém, a pequena desvantagem numérica é compensada pelo poder que essas denominações evangélicas passaram a ocupar nos diversos espaços da sociedade, contando no rádio, na TV, no setor fonográfico, no mercado editorial, no mercado da moda, em todas as periferias do país e nos lugares mais inacessíveis. E, fazendo parte do roteiro, passaram a ocupar um espaço amplo na política, tanto na Política institucional como nos espaços onde os movimentos sociais e setores da esquerda deixaram de atuar, as igrejas evangélicas passou a cumprir um papel social dentro das comunidades. 


MAS MINHA IGREJA É DIFERENTE

Nos discursos comuns, que se escutam de evangélicos, é que há um preconceito em torno da fé professada por eles, inclusive com reducionismo estereotipados e agressivos, como o termo crente. Assim como as diversas manifestações preconceituosas dirigidas a esses grupos que, em nada ajuda no diálogo.

Precisamos separar a crítica necessária, ao ataque gratuito que polariza a sociedade, algo que só trás benefício aos grupos políticos de poder. 

Porém, nada comparado à violência que os seguidores das religiões afrodescendentes sofrem todos os dias, em todas instâncias da sociedade, inclusive sentido na pele e muitas vezes pagando com a vida pela intolerância religiosa. Coincidentemente, proferida por muitos membros do alto escalão das religiões evangélicas, que na década de 90 teve seu ápice, principalmente em denominações neopentecostais como a Universal do Reino de Deus. Afinal, quem se lembra do episódio famoso onde um pastor da Universal chuta uma imagem de Nossa Senhora Aparecida ou dos programas veiculados pela TV Record, onde o alvo eram sempre os praticantes da umbanda e do candomblé, tidos como demônios e praticantes de uma religião maléfica (3)

Aventuras na História · Sérgio Von Helder, o pastor que chutou a Nossa  Senhora Aparecida ao vivo

Esse discurso que parte de cima, dos altos escalões, dos grandes representantes dessas denominações religiosas, passa a fazer parte de toda a organização simbólica das igrejas de base, muitas vezes com um verniz socialmente aceito e uma capa que busca se diferenciar sendo igual. Exemplo disso são as igrejas que usam uma roupagem juvenil e com uma linguagem coloquial para atrair um público jovem.  


Mesmo as igrejas simples, das comunidades, alimentam núcleos centrais e personalidades que as comandam e influenciam de forma invisível. E para manter seu poder e expandir seus dogmas se faz necessários alguns elementos, como dinheiro, controle dos meios de comunicação e participação política. É isso que as denominações evangélicas conseguiram no quadro político atual, fazer parte da organização política do Estado brasileiro (a bancada evangélica é a prova disso).

E, como essas denominações e os diversos pastores e pastoras conseguiram espaço na política brasileira? Com o voto dos evangélicos.

Os discursos e as ideias desses pastores e pastoras sempre foram muito claros, com uma linguagem simples, agressiva, deixando evidente um propósito conservador e atacando grupos e setores da população diferentes de seus dogmas e conduta de vida, esses religiosos-políticos ascendem por meio do voto dos evangélicos, voto esse que começa a ser direcionado nos cultos, nas reuniões, utilizando de todo o aparato da própria igreja. Não atoa que, a denominação "pastor" ou "pastora" na hora de se apresentar como candidato ou candidata faz toda diferença.

Por mais que haja um setor progressista dentro dessas denominações, ainda sim, é uma minoria, que pouca inserção tem no todo que é conservador, preconceituoso, agressivo e com o seu proselitismo tentam fazer com que todos se convertam, numa propaganda que é constante.

Quem mora na periferias sabe bem o que é acordar às 8:00h da manhã com representantes batendo à porta tentando "vender" sua fé, caravanas levando gratuitamente até os cultos, grupos que lhe param nas ruas professando e propagando a fé, num esquema de marketing organizado, contanto com material de propaganda, camisetas e toda a sorte de adornos que os identifiquem e mostrem a unidade do grupo.


O EVANGÉLICO EM DESCONSTRUÇÃO

Com tudo isso exposto, a reposta do título fica bem clara, Floderlis representa sim os evangélicos com sua moral que aparenta santidade e propriedade na hora de acusar e condenar, mas que no fundo padece de uma ética humana.

E sim, essa é uma análise generalizada, assim como é toda análise social. Ou seja, por mais que você diga que nem todos evangélicos são assim, acredito, porém, a maioria demonstra as mesmas condutas.

Dois exemplos vêm a mente quando penso nessa ética falha da religião. A primeira da minha experiência em sala de aula, onde muitos meninos e meninas que apresentam comportamento inadequado, inclusive com desrespeito e até mesmo apresentando ligação com atos ilícitos, como a práticas de pequenos furtos ou ligações com o tráfico, tem como tábua de salvação a religião. 

Lembro-me quando um aluno do noturno, que declaradamente praticava pequenos furtos, se mostrou surpreso e me repreendeu quando soube que era ateu (o próprio havia me perguntando). Ao questioná-lo sobre sua conduta, o aluno disse que o importante é que ele acreditava em Deus e ia para a igreja, que respeitar ou não a professora não tinha nada a ver com a fé dele. Posso expandir esse exemplo para grupos de traficantes evangélicos que vandalizam e expulsam seguidores da umbanda e do candomblé, nas comunidades do Rio de Janeiro, e que apresentam a mesma moral religiosa torta do aluno indisciplinado, mas que se orgulha em dizer que acredita em Deus e vai ao culto todos domingos.   

O segundo exemplo vem de um mecânico a quem confio meu carro e, posso dizer, excelente profissional. Porém, toda vez que eu o encontro sou obrigado a escutar toda a sorte de barbaridades preconceituosas sobre vários grupos, modos de vida e lições de moral de uma ética duvidante, ao qual apenas aceno com a cabeça sem entrar em confronto. 

Mas, com certeza, todos nós conhecemos um religioso (evangélico ou não) que possui a mesma atitude, vigiando a conduta do outro, condenando e algumas vezes atacando de forma agressiva grupos e pessoas diferentes de suas conduta. Nos grupos de WhatsApp, nas reuniões de família, na vizinhança, em todos os lugares sempre encontramos aqueles que tentam professar sua fé invadindo o espaço do outro. 

E nesse ponto, a crítica necessária aos evangélicos se faz importante, pois o avanço desse grupo na política vem colocando em risco o Estado democrático de direito, as liberdades individuais, a individualidade dos sujeitos, onde assuntos de ordem políticas se misturam a assuntos de ordem religiosos, terrenos distintos. 

E para ilustra isso, dou continuidade à leitura de Tiago 3:1-2:

"Meus irmãos, não sejam muitos de vocês mestres, pois nós, os que ensinamos, seremos julgados com mais rigor.  É verdade que todos nós cometemos muitos erros. Se pudéssemos controlar a língua, seríamos perfeitos, capazes de nos controlar em todos os outros sentidos"

A interpretação (4) que faço desse trecho de Tiago é a de que os evangélico comecem de fato a fazer uma exame de autocrítica, condição importante para todos e qualquer sujeito em sua fé. A começar entendendo que a fé dentro de uma sociedade plural, democrática e laica, não pode invadir determinados espaços e a vida do outro.

A religiosidade é de foro privado e a presença invasiva de setores religiosos bota em risco o direito do outro. A segunda questão está na necessidade de que todo dogma religioso, seja ele qual for, corre o risco de cometer erros em relação ao outro, sobretudo quando esse outro é diferente. Nesse sentido, é necessário que evangélicos reconheçam o preconceito dentro de si, o racismo, a homofobia, o desrespeito aos princípios éticos e democráticos, pois somente dessa forma ele poderá ser um evangélico em desconstrução. 

deconstruction – hovercraftdoggy

Um último ponto é a de que, questões políticas devem caminhar em separado, sendo assim, um candidato evangélico, pastor ou pastora, da mesma forma que um candidato padre não pode ser entendido como sinônimo de honestidade ou de um político que de fato está pensando no todo social. Aliás, a identificação de políticos com suas profissões ou religiões deveria ser repensado. 


Esse processo de desconstrução não significa abrir mão de sua fé, mas conseguir guardá-la para si sem atacar o outro na sua individualidade. 

Florderlis representa sim os evangélicos, assim como padres pedófilos e corruptos representam sim os anos de atrocidade da igreja católica. E uma mudança só é possível quando essa fé for acompanhada da importância de uma ética humana. Pois, de que adianta temer um Deus metafísico, idealizar um paraíso longe do inferno, sendo que as atitudes caminham em sentido contrário? Onde a consciência política e ecológica é inexistente?

Essa consciência crítica é parte de diversas religiões (sim, existentes milhares de religiões ao longo da história da humanidade), pois assim como outros elementos culturais, as religiões são dinâmicas, passando por mudanças que se adequem ao mundo em que vivem. E isso não significa ser mais ou menos religioso, apenas, consciente e ético tanto com os valores de Deus como da humanidade. 

Para finalizar, essa análise não recai somente aos evangélicos, mas ao católicos. Afinal, estamos falando de dois grupos religiosos (e bastante diversificados) que detém um domínio histórico, social e político. Em outras palavras, são grupos de poder que fazem parte dos aparelhos ideológicos do Estado (5). Porém, essa mesma crítica vai a outros grupos de igual representatividade e poder. 

Criticar é importante e faz parte de todo jogo social, e quando não se aceita críticas ou quando elas incomodam a ponto de causar furor, podem ter certeza, algo precisa ser revisto para que possa de fato ter uma presença positiva dentro da sociedade. 


(1) GIANETTI, Eduardo. Vícios privados, benefícios públicos? A ética na riqueza das nações. São Paulo: Companhia da Letras, 1993

(2) Link: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/13/50percent-dos-brasileiros-sao-catolicos-31percent-evangelicos-e-10percent-nao-tem-religiao-diz-datafolha.ghtml

(3) ALMEIDA, Ronaldo de. AIgreja Universal e seus demônios: um estudo etnográfico. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2009

(4) É importante lembrar que a bíblia sagrada é o livro mais lido e editado no mundo todo, assim como um livro que passou por diversas traduções, onde em cada época histórica as traduções seguiam interesses sociais e políticos de suas época. Muitas de suas partes foram escritas bem depois, inclusive sofrendo interferências diretas de seus tradutores.

(5) Essa ideia é do filósofo Louis Althusser, que em outro momento escreverei sobre (se é que já não escrevi)


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